sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O impedimento

Entender como funciona a regra do impedimento no futebol é a coisa mais fácil do mundo. Pelo menos pra mim. E desde quando eu era um metro mais baixo e oitenta quilos mais magro.

Se papai e mamãe estavam brigando na cozinha, na frente do fogão e da geladeira, e mamãe era a zagueira, papai, como bom atacante, não estava impedido. Se o carrinho de bebê da minha irmãzinha estava um metro e meio atrás do berço, e eu me posicionava entre o tal berço e o pudim de leite condensado, sobremesa dela, mamãe marcava impedimento na hora.

Aprendi assim. Fácil demais. Como não entender isso, meu Deus? Depois ainda mudaram um pouco da regra. Alguma coisa sobre mesma linha. Nisso eu já era adolescente. Mas ainda assim ficou fácil. Por exemplo: o garçom vinha com a bandeja cheia de cerveja. Se minha mãe estivesse olhando pra mim, na mesma linha da bandeja, eu estava impedido. Se ela estivesse distraída, falando com a Dona Ermengarda sobre qualquer assunto paroquial, eu driblava o garçom, passava por algum pai preocupado, voltava no garçom, enchia o copo de novo, saía na cara de alguma goleira incauta e goooooooooooooooool!!!

Depois virei adulto. E as regras mudaram outra vez. O impedimento passou a chegar de 28 em 28 dias, mais ou menos um pouco depois do extremo mau humor da minha esposa. Mas isso é assunto que os velhinhos da FIFA insistem em não debater.

O sabichão

Tinha um moleque na minha sala da terceira série do primário que sabia de cor e salteado a lista dos campeões brasileiros, argentinos, italianos, austríacos e suazilandeses. Campeonatos, Copas, repescagens e tudo mais que pudesse caber numa tabela ou numa enciclopédia.

Naquele longínquo tempo, órfão de Google e Wikipedia, isso era um fenômeno. Tá certo que Suazilândia é uma grande mentira minha, mas admito que os títulos do glorioso Casino Salzburg da Áustria estavam na ponta da língua do guri.

Eu ficava remoendo meu misto de raiva e inveja daquele canalha, que era meu reserva na seleção Sub-9 do colégio. Como alguém podia saber mais de futebol do que eu? Logo eu, que conseguia a proeza de ser ruim em português, matemática, geografia, história, ciências e tudo mais que valia nota, justamente pra ser bom em futebol? A maior injustiça da minha infância era a falta de perguntas sobre o tema nas provas finais.

Por não ter a memória desenvolvida e a cabeça do tamanho de um repolho maduro do meu arqui-inimigo, resolvi desenvolver um outro talento: o de ser especialista em times pequenos Brasil afora.

Uberaba e Valeriodoce passaram a fazer um clássico do tamanho de Milan e Internazionale pra mim. Times com nomes fantásticos como Ribeiro Junqueira, Cardoso Moreira, Moto Clube e Fast não podiam ficar muito tempo longe das minhas atenções.

Aprendi que o XV de Piracicaba foi fundado em 1913, que o ex-presidente Café Filho foi goleiro do Alecrim, que existe Mixto com X nesta vida, e que Olaria é muito mais que uma simples fábrica de tijolos.

O sabichão dos meus tempos de colégio virou professor de física. Futebol pra ele, só de quatro em quatro anos, quando tem Copa do Mundo na TV. E olhe lá! A vida nos distanciou neste assunto, mas nos tornou grandes amigos. Os melhores. Sou padrinho da filha dele, que insisto em presentear com souvenires de futebol. E aqui, cá entre nós, depois de muito insistir, ele finalmente me confessou: era blefe! Até conhecia os times da Itália e da Inglaterra. Mas nunca tinha ouvido falar do tal Casino Salzburg, sobre o qual eu tanto insistia em perguntar. Só tinha achado o nome do time bonito e ponto final!

Os que não gostam de futebol

Eu não conseguia entender os que não gostavam de futebol. Para mim, eram alienígenas. Hoje eu entendo que os alienígenas podem ser nossos grandes amigos. O problema era explicar isso para um menino de cinco anos, que dividia arroz e feijão no prato de almoço, alinhados frente a frente, como se fossem Inter e Grêmio na final do Gauchão, entre batatas fritas, bifes e ervilhas lotando a arquibancada.

Como alguém de mente sã poderia não odiar o Paolo Rossi? Ou não querer ser o Dasaev numa disputa de pênaltis com bola de meia? Como algum adulto sensato poderia falar mal do Figueiredo, que tanto queria ser esquecido, enquanto um assunto muito mais importante estava em jogo, como um Fla-Flu decidindo o segundo turno da Chave B da Fase 2 do Campeonato Carioca?

Não gostar de futebol, na minha mente infantil, era tão absurdo como não ganhar brinquedo no Natal. Tão sem graça como ginástica olímpica na aula de educação física. E tão chato como horário político na televisão. Aliás, isso é chato desde sempre.

Hoje em dia sou muito mais maduro. Tenho vários amigos alienígenas. Vou a festas de gregos e troianos. Mas se ninguém falar de futebol comigo, finjo uma dor de cabeça e vou embora pra casa logo.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Trilha sonora

As canções mais marcantes da minha infância eu não aprendi na escola. Nem nos programas infantis comandados por loiras sensuais. Foram nas arquibancadas do Mineirão. É, amigo, por mais que fossem coisas que eu não pudesse cantar perto das tias mais velhas, foram os gritos de guerra do grande estádio da Pampulha os top hits dos primeiros anos da minha vida.

Minha mãe, óbvio, franzia o rosto. Brigava, chegava a negociar doces pelo abandono total das minhas canções. Fico pensando que devia ser mesmo chato. Afinal, um moleque de um metro e vinte de altura falando os maiores impropérios do mundo a qualquer hora do dia é dose cavalar. É claro que o som dos estádios nos anos 80 parece música de ninar perto dos urros de violência de hoje. Mas mesmo assim, eram um monte de barbaridades.

Na escola o problema era ainda maior. Porque eram atleticanos e cruzeirenses. E alguns americanos. E a gente também inventava as próprias músicas, que não poupavam a honra e o caráter dos coleguinhas. E das pobres mães deles. Isso me rendeu boas horas diante das supervisoras e diretoras da vida. E alguns dias de suspensão.

Trinta anos depois, os gritos nos estádios ainda estão repletos de palavrões. Mas hoje existe uma competição pra lá de sadia entre as torcidas para criar músicas que valorizem a história e a conquista dos seus clubes. Espero que as crianças de hoje tenham momentos mais educativos nos estádios do que eu tive. Mas que era bom, era...

Vendedor de picolé

A primeira vez que entrei nas arquibancadas do Mineirão foi inesquecível. Claro que sim, já que ainda falo deste momento mesmo passados 30 anos. Que me desculpem os outros mineiros, esse povo tão sedento por água salgada, mas pra mim foi mais marcante do que quando vi o mar.

Naquele tempo havia bandeiras nas arquibancadas. E estas eram de cimento. O mesmo cimento que, anos depois percebi, uniam e igualavam o operário ao doutor, em meio a abraços sinceros, na hora de comemorar um gol.

Mas, enfim, era um mosaico absurdo de cores e barulho para um menino de três anos. E me lembro do meu tio gritando pra eu prestar atenção no jogo e parar de olhar pro lado. Mas como fazer isso? O que eu entendia daquele jogo? O que mais me fascinava no futebol – e é assim até hoje – é o entorno.

Naquela época o que importava era onde estava o vendedor de picolé. E o resto era um bando de gente de radinho colado ao ouvido, gritando coisas que eu não conseguia compreender.
Fico me lembrando de 30 anos atrás. Hoje chego ao estádio com planilhas, câmeras, modens, parafernálias mil. Tenho que me sentar num lugar com boa vista do gramado. Escrever, analisar, entrevistar, explicar, detalhar, fotografar...
Mas, até hoje, só o que me importa é onde está o maldito vendedor de picolé.

Presente de criança

Presente pra criança é brinquedo. Ponto final. Roupa quem dá é gente chata. Pode perguntar pra qualquer garotinha ou garotinho aí do lado agora. E não adianta, vai ser chata pro resto da vida, mesmo quando a diferença de idade já não for assim tão grande. Memória de gente pequena é um negócio...

Criança tem é que brincar. Não precisa ser nada caro. Já vi muito marmanjo levar o sobrinho ou o afilhado naquela loja bacana do shopping, disposto a gastar uma baba pra agradar o guri e, quando ele menos espera, um caminhãozinho de plástico, que custa dez reais, consegue desviar o olhar do fedelho do X-Box ou do carrinho de controle remoto, que custa pelo menos 40 vezes mais.

Eu gostava de ganhar brinquedo, claro. Mas é uma coisa que não dá pra explicar. Tinha que ser relacionado a futebol. Jogo de botão era o melhor. Um estrelão então nem se fala. Era a mesma sensação que os clubes hoje têm quando inauguram suas arenas. O estádio-estrelão tinha nome, apelidão no aumentativo e capacidade de público imaginária. E exagerada. Como os Castelões e Batistões Brasil afora.

Tinha também um jogo que consistia basicamente num pedaço de madeira com onze pregos fixos em cada lado e, claro, duas traves. A bola era uma moeda. Disputei memoráveis partidas nesses campo; tinha o clássico aquaplay, que é meio chato pra quem olha hoje, mas na época era uma coisa fora do comum de emocionante; figurinha de jogador e álbum, que até hoje fazem sucesso mundo afora; e tinha o Atari. Perto dos videogames de hoje, é praticamente uma brincadeira entre homens da caverna, de tão antigo.

Mas, se tem alguém que gosta de quebrar paradigma é criança. Presente bom é brinquedo, claro. Mas menino esperto esperava mesmo era ganhar um embrulhinho meio molenga, com a camisa do time de coração dentro. As cores reluzindo, o escudo brilhando, o tecido que ficava pinicando no corpo nos primeiros dias. Não importa, era a camisa mais linda do mundo. É até hoje. E isso sim, é presente bom de se ganhar!

O futebol é diferente

Cresci ouvindo a frase do Barão de Coubertin, fanático que sou por qualquer disputa que envolvam dois times e um só objetivo, desde o gênesis da minha vida. Nas precoces leituras de infância, misturei Fernando Pessoa ao nobre francês, e cheguei à óbvia conclusão que competir é preciso, ganhar não é preciso.

Amarga ilusão! Via meu pai, tios e primos se desesperarem após qualquer revés do time de coração. Via naqueles senhores da TV, e de forma semelhante os ouvia no rádio, a mesma ladainha. A seleção de 82 perdeu a Copa, e ai de mim quando insistia em tentar decorar o belo hino da Itália na escola. Eu era um traidor! Mais do que isso, uma aberração!

O importante é competir, ouço isso desde sempre. Mas no futebol é diferente. Se não ganhar não tem valor nenhum. O herói de ontem, aquele ídolo da figurinha autocolante pregada na porta do armário, é o inimigo público número um de hoje. O treinador, o gênio da hora do almoço, vira um completo imbecil pouco antes da hora de dormir.

No futebol é diferente.  Meus olhos de menino não conseguiam diferenciar tons tão distintos entre uma vitória e uma derrota. E que falta me fazem aqueles dias em que ver a bola branca rolar sobre a relva verde era mais lindo do que qualquer placar burocrático do mundo ousasse ser.

Meus clássicos inesquecíveis

Em um tempo que hoje lamento estar tão distante, me lembro bem de jogar futebol sozinho no quintal da minha casa. Não por falta de amizades ou de companhia para o ludopédio doméstico ou outra brincadeira qualquer. Havia vários amigos na rua de cima, mas, infelizmente (ou talvez não) eles não estavam à minha disposição na hora que eu quisesse jogar um clássico no Mineirão ou disputar um GP em Monte Carlo. Tinha também minha irmã, claro. Eu era sempre um chefe de escritório, cozinheiro ou marido dedicado, mas nunca por mais de meia hora.

O certo é que durante meus minutos diários de solidão na infância, talvez os melhores de toda a minha vida, eu me via sempre num estádio lotado, entre Carlinhos Sabiá, Reinaldo, Éder, Joãozinho, Carlos Alberto Seixas e João Leite. Pra mim, o Mineirão era só meu e naquele instante eu conseguia ser craque, frangueiro, cronista, torcedor e gandula. Tudo ao mesmo tempo. A fantasia é a grande maravilha indecifrável da mente infantil.

Eu me lembro bem da Dona Antônia, que trabalhava na minha velha casa. Ela se escondia atrás de uma parede e assistia aos duelos memoráveis entre Cruzeiros, Atléticos, Flamengos e Interes válidos por Copas Uniões que só existiam na minha cabeça. Numa época em que os rivais tinham Zico e Taffarel era difícil fazer uma final imaginária entre os esquadrões mineiros. Mas ainda assim eu tentava. E meu público adorava. Pra mim, 100 mil pagantes. Na verdade, só a Dona Antônia. E sem pagar ingresso!

Passou o tempo. E até hoje nunca joguei um clássico num Mineirão lotado. Dona Antônia, que mais ria de mim do que propriamente torcia, já não está mais aqui. Meus amigos e minha irmã seguem como meus maiores fãs. E também os que mais me vaiam. Os clássicos imaginários do meu quintal são, até hoje, os melhores jogos que vi na vida.