quinta-feira, 12 de setembro de 2013

A ciência


A ciência explica facilmente porque você é louco por cerveja e não resiste a uma picanha mal passada sobre um bocadinho de arroz branco. Seu insaciável apetite por lasanhas, moquecas e feijoadas, em todas as ocasiões, também é artigo de simples entendimento para qualquer sujeito de jaleco branco. O mesmo vale para chocolates, doces e pudins das mais variadas espécies. Meia hora de leitura sobre as papilas gustativas da língua humana e sobre as propriedades dos alimentos, tais como cheiro, textura e, principalmente, sabor, dissipam todas as possíveis dúvidas.

A ciência explica tranquilamente porque você perde a calma, o juízo e a razão quando chega perto daquela morena. E também é capaz de elucidar o mistério do porquê todo o processo se repetir ao lado da loira. E da mulata. E da ruiva. Na verdade, a culpa não é sua. Seu corpo carrega uns negócios chamados hormônios que desencadeiam reações que você conhece bem, sabe exatamente como funciona, mas nunca consegue impedir que avacalhem com sua vida. Talvez seja melhor assim.

A ciência explica didaticamente e de forma bem simples porque você chora, ri e dorme. E também porque fica irritado, empolgado e chateado. Explica porque você sente dor e até mesmo porque alguns de vocês têm prazer nisso. Explica porque você é gordo, magro, gago, sonso, campeão dos 100 metros rasos ou bom em matemática. Explica porque você não pode transformar ferro em ouro e nem passar por aqui sem morrer.

Enfim, a ciência explica praticamente tudo que existe neste mundo. Mas ainda há um mistério que não foi elucidado. E eu desafio qualquer doutor a decifrá-lo. O que leva um ser humano, dono de suas perfeitas faculdades mentais, a ser torcedor fanático de um clube de futebol? Veja bem que a dúvida não está em gostar ou não do esporte, mas em ser apaixonado por um determinado time. Sim, qualquer um, incluindo os poderosos Barcelona, Bayern de Munique, Manchester United e Milan. Porque até eles já passaram por fases tenebrosas em algum momento da história.

Chega um dia em que você para pra pensar. Sua vida vai muito bem, no final das contas. Está resolvido no amor, trabalha com o que gosta e ainda é bem remunerado por isto. A saúde está perfeita, os amigos estão por perto e a família vive feliz. Você sabe que está sendo fiel com seus ideais e honesto com quem o rodeia. Mas aí seu time toma uma goleada do maior rival e nada mais presta em sua existência. A dor invade seu peito e a tristeza e a raiva te consomem. Além de te impedirem de sair de casa, se relacionar com outras pessoas e até mesmo de viver em sociedade.

A ciência não explica isso. Não há fórmula, teorema ou axioma que responda tamanha aberração. É mais ou menos o mesmo que acontece naqueles dias em que você se descobre só, abandonado e triste. Vivendo miseravelmente entre melancolia e inércia, entre tosse e pigarro, numa existência que você considera inútil, contando os minutos para o fim desta tortura chegar. Até que seu time dá uma surra no maldito rival e subitamente tudo muda. Você vira dono de vinte Ferraris, de uma ogiva nuclear ou de um ranchinho ao pé da serra, não importa o tamanho de sua ambição nesta hora. O que é certo e o que conta pra você é a sensação de poder e invencibilidade. Você é o cara mais feliz do mundo e vai gritar pro mundo inteiro ouvir.

O homem já conseguiu respostas para praticamente todas as perguntas. Mas algumas ainda continuam sendo enormes enigmas, embora a humanidade tenha feito consideráveis progressos tecnológicos nesta eterna busca. Certas dúvidas, entretanto, devem permanecer incomodando por mais um tempo. Qual a origem da vida? Para onde vamos após a morte? Por que as pessoas torcem para um time de futebol? Tantas incertezas, tantos mistérios...

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Dirigir em BH


Dirigir em Belo Horizonte está cada vez mais difícil e estressante. É a sensação que tenho e que percebo ser comum em muitos outros conterrâneos. Antes que alguém diga que é por causa do excessivo número de carros nas ruas, lembro que o fenômeno acontece em todas as cidades do país, mas o que vejo em BH só reparo por aqui mesmo.

Por causa do meu trabalho, dirijo nas principais capitais do Brasil, apenas três ou quatro dias por ano, é verdade, mas o suficiente para notar algumas coisas. Porto Alegre, Recife e Salvador também sofrem com a grande quantidade de carros nas ruas, causa lógica de engarrafamentos e lentidões. Até mesmo Curitiba, referência mundial em transporte público de qualidade e trânsito organizado, passa pelo problema. Não vou abordar Rio e São Paulo neste quesito, por motivos óbvios.

A diferença que vejo em Belo Horizonte, em relação a todas estas cidades, e também a Goiânia, Florianópolis, Maceió, Campinas e São Luís, é a educação do motorista da capital mineira. Volto a repetir que dirijo apenas alguns dias por ano nestes outros lugares e praticamente doze meses por ano aqui, mas a nítida impressão que tenho é que nós somos mais mal-educados que os outros.

Parece que o mineiro está na guerra quando dirige. Lembrando aquele desenho do Pateta, de 1950, em que ele se transforma de um dócil senhor em um monstro raivoso, após alguns minutos no tráfego pesado. Não é muito difícil presenciar nas ruas da cidade discussões com xingamentos, dedos em riste e em outras posições menos elegantes. O belo-horizontino já entra em seu carro armado de impaciência, raiva e intolerância, esperando o pior no caminho para o trabalho, para a escola ou para a casa, e disposto, em alguns casos, a partir das ameaças para as vias de fato.

Outro aspecto que percebo é a necessidade de levar vantagem em tudo. O motorista daqui prefere fechar um cruzamento ou deixar de ceder passagem a outro pensando que está salvando alguns segundos do seu dia, quando, na verdade, está colaborando para a construção de algo muito maior e vai fazer muito mais gente perder tempo, incluindo ele mesmo, é claro. O motorista belo-horizontino parece sentir um golpe em sua honra quando outro carro o ultrapassa ou entra em sua frente em uma grande avenida num congestionamento.

Melhorar toda esta conjuntura não é fácil e exige sacrifício, paciência e, principalmente, mudança total de hábitos e atitudes. Textos como este em redes sociais podem ajudar sim, mas a grande iniciativa tem que partir do poder público. Vejo a BHTrans muito mais preocupada em tomar medidas paliativas e arrecadar com multas do que em organizar grandes campanhas de educação e gentileza no trânsito, envolvendo todos os setores da sociedade, e convidando o cidadão a se envolver e ser parte efetiva deste processo de mudança.

Nasci, cresci e morei em Belo Horizonte durante praticamente toda minha vida. Sei que não somos mal-educados nem egoístas e que, quando queremos, sabemos nos envolver em causas importantes e que trazem o bem comum. Cobrar do poder público um transporte coletivo que realmente funcione vai diminuir o número de carros nas ruas. Isto também podemos fazer. Mas o que nos cabe agora é mudar os próprios hábitos. Cada um de nós pode pensar no que está fazendo ao volante e em como se comporta nas ruas da cidade. Para começar a diminuir a tortura que é andar de carro em Belo Horizonte por míseros dez minutos.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Socando políticos


Semana passada, em um restaurante do Horto, bairro da zona sul do Rio de Janeiro, colado no Jardim Botânico, o músico carioca Bernardo Botkay e sua namorada se levantaram da mesa em que jantavam, foram até onde Eduardo Paes, o prefeito da cidade, também comia com a esposa, e começaram a xingá-lo. Ficaram por ali, falando o que queriam com o político, por cerca de dois minutos. O termo mais recorrente dito pelo casal foi ‘seu bosta’. A brincadeira perdeu a graça e os dois voltaram para a própria mesa.

Ainda insatisfeitos com a reação do prefeito e com a quantidade de impropérios que tinham falado até então, o músico e a namorada voltaram ao posto e continuaram a atacar Eduardo Paes. Até que o político chegou ao seu limite, perdeu a paciência e acertou dois socos no rosto de Bernardo. Tudo sob os atentos olhares de uma preparada equipe de seguranças, é bom que se diga.

Se os detalhes da confusão estão perfeitamente relatados ou não é indiferente, porque não fugiu muito disso. Tomando como base o que Botkay postou no Facebook, Paes divulgou através de sua assessoria e os relatos da imprensa e da polícia, a história é praticamente esta. Aquele típico conto onde não há mocinhos, heróis nem final feliz. Assim mesmo, triste, deprimente e melancólico.

Não quero aqui fazer uma análise da vida pública de Eduardo Paes. Simplesmente porque não vem ao caso. Tenho minha opinião formada sobre o prefeito do Rio. Sei quem ele é, o que fez de bom e de ruim, quem são seus amigos e seus inimigos, quais são seus planos políticos e do que ele é capaz para atingir seus objetivos. Mas, repito, isto não é importante nesta passagem do restaurante do Horto, ainda mais diante da reflexão que este texto quer propor.

Se desde o princípio, o ato de Bernardo Botkay pareceu estúpido e infantil, no final das contas, confirmou tudo isto e acabou por fortalecer a imagem de Eduardo Paes aos olhos da população. Sim, porque se o prefeito está sendo visto por alguns como um homem impulsivo e violento, pela reação que teve, também está sabendo se posicionar diante da mídia como uma vítima que defendeu sua honra e protegeu a esposa diante de uma agressão gratuita em um momento reservado. Ainda mais numa sociedade na qual os jovens não hesitam em expor posições políticas de extrema direita, onde fazer justiça com as próprias mãos é cada vez mais comum. Enfim, Paes deve agradecer a Botkay pela injeção de popularidade que ganhou e que as próximas pesquisas de opinião vão confirmar. Imagina a festa...

Agredir fisicamente – ou verbalmente – outro ser humano nunca foi solução para nenhum problema na Terra. Ainda que você ache que o outro mereça o castigo ou que se sinta realizado com o que fez. O dia seguinte não demora muito a chegar e algumas perguntas óbvias não vão abandonar sua cabeça.

- Valeu a pena? Alguma coisa realmente mudou? Eu me sinto melhor com o que fiz?

Mas, se após todas as reflexões e respostas, você ainda achar que atacar um político na mesa ao lado de um restaurante valha a pena, que seja ele a deixar o lugar sangrando e não você.


sábado, 18 de maio de 2013

O barraco do Tonim


O barraco do Tonim nunca foi lá essas coisas. Apenas quatro cômodos, sem reboco, chão batido, nada de piso, banheiro do lado de fora e muitas goteiras. Tá certo que era firme, todo feito de tijolos e longe da encosta do morro, uma garantia de segurança nos tempos de chuva, o que por si só já fazia do barraco do Tonim um dos melhores daquela região do aglomerado.

A Guiomar sempre se queixava com o marido. Pedia pra ele dar uma guaribada aqui, uma ajeitada ali e uma reparada acolá. Mas o Tonim enrolava, dizia que não tinha tempo nem dinheiro pra reformar o barraco e a vida ia seguindo do jeito que estava. A Guiomar, o Tonim e os cinco filhos, apertados no barraco.

Até que um dia, alguns homens de terno, gravata e sapatos caros subiram o morro. Anunciaram a todos, em vários idiomas, que iam organizar uma grande festa ali. Dessas de arromba, inesquecíveis, para fazer história. Escolheram o barraco do Tonim como principal ponto de apoio do evento, após uma disputa com outros muquifos da vizinhança. Tonim ficou orgulhoso com a vitória sobre os casebres rivais e comemorou com a criançada. A Guiomar, sem entender muito bem tudo aquilo, olhava para o marido com cara desconfiada, enquanto ele ficava rindo sozinho, imaginando a festa.

Os homens de terno, gravata e sapatos caros, que falavam vários idiomas, logo viram que o barraco do Tonim era precário e precisava de muitas melhorias para receber a grande festa. Fizeram uma lista de exigências e deram prazos para ele, que se comprometeu a deixar o barraco no jeito para uma ocasião de tamanha importância como aquela. A Guiomar, coitada, continuava alheia a tudo. Era tão dona do barraco quanto Tonim, mas não tinha sido consultada nem ouvida em nenhum momento.

Entusiasmado com as tarefas que tinha recebido dos homens de terno, gravata e sapatos caros, Tonim começou a trabalhar. Fez um orçamento para saber quanto ia gastar para cumprir todos os itens exigidos por aqueles que falavam vários idiomas. Guiomar se irritou, ao perceber que o marido planejava usar as poucas e suadas economias da família para resolver problemas supérfluos e menos importantes do que a saúde, o bem estar, o conforto e até mesmo a alimentação dos filhos. Convicto do que fazia, Tonim se justificava para a esposa, dizendo que a grande festa ia deixar um legado histórico para a família e para o barraco.

Os problemas de Tonim, entretanto, não demoraram a aparecer. Para cada real que inicialmente planejou gastar, teve que desembolsar mais dois. As obras no barraco estavam atrasadas e os amigos da comunidade que foram convidados para ajudar Tonim no trabalho pareciam querer se aproveitar dele e tirar vantagem no que podiam. Um exemplo disso foi o puxadinho feito na parte leste da casa, que, além de estourar todos os cronogramas dos homens de terno, gravata e sapatos caros, custou dez vezes mais que o previsto. Guiomar já não conseguia mais conter a indignação, ainda mais porque via os filhos acreditando cegamente nas loucuras e promessas que o pai fazia. Segundo Tonim, um dia eles iriam usufruir todos os benefícios que estavam sendo feitos no barraco.

O dia da festa chegou. O barraco estava lindo, pintado, iluminado e com novos móveis. Azulejos, piso importado, copos de cristal e uma medalha de ouro num altar. Com a urgência dos prazos, alguns detalhes ficaram pendentes, mas Tonim não se importou em escondê-los como poeira embaixo do tapete persa que estava na sala. O anfitrião, maravilhado com a multidão de gente que conversava em vários idiomas, não tinha tempo para reparar nos filhos, que, por causa dos gastos extravagantes do pai, não iam mais à escola, adoeciam com frequência e não se alimentavam direito. Cansado das constantes críticas de Guiomar, Tonim seguiu o conselho dos homens de terno, gravata e sapatos caros e mandou a esposa e a criançada para a casa da sogra, num barraco distante do seu.

Algum tempo depois, a festa acabou. Não demorou muito para levarem embora do barraco do Tonim os móveis, os lustres, o piso importado, o altar e os copos de cristal. Levaram também o tapete persa, mas, por algum motivo desconhecido, deixaram a poeira para trás. Só havia restado a medalha de ouro, mas Tonim viu, impotente, um homem de terno, gravata e sapatos caros colocá-la dentro no bolso, antes de sair do barraco.

Exausto e se sentindo traído, Tonim procurou alguém que falasse vários idiomas para receber alguma explicação. Mas todos eles também já tinham ido embora. Desesperado, se lembrou de Guiomar e dos filhos, mas quando se deu conta de que eles nunca mais voltariam porque nenhum legado havia restado daquela festa, sentou no chão e chorou. Não por se sentir só e estúpido, mas por perceber, naquela hora, que tinha perdido o que tinha de mais puro dentro de si: sua dignidade.


quinta-feira, 16 de maio de 2013

Padronizaram o Zé Luís


Zé Luís era um sujeito autêntico, de personalidade marcante e extremamente carismático. Era popular, tinha muitos amigos e fazia sucesso com a mulherada. Nunca teve frescura, frequentava todos os tipos de ambiente e respeitava as diferenças e particularidades de cada pessoa. Enfim, Zé Luís era um cara legal, daqueles que todo mundo tem vontade de ter como amigo.

Boêmio e amante da noite, Zé Luís não dispensava uma boa roda de samba e um show de rock. Gostava de cerveja, torresmo, frango com angu e cachaça. Não se importava com roupas de marca, carros importados e relógios caros. Estava feliz de bermuda, chinelo e camiseta. Zé sabia aproveitar a vida com responsabilidade. Sempre foi bom filho, bom aluno e um trabalhador exemplar.

Até que conheceu Sofia, uma linda moça de família rica. Criada como princesa, estudou nos colégios mais caros, morou em Paris e teve do bom e do melhor durante toda a vida. Era chamada de Fifa pelos amigos. Foi amor à primeira vista. Zé Luís nunca havia sentido nada parecido. Fifa também. Saíram algumas vezes e começaram a namorar.

No começo do relacionamento, Fifa achava graça no jeito largado e espontâneo de Zé Luís. A família da moça também gostou dele. Mas praquela história dar certo, eram necessários alguns ajustes no modo de Zé Luís se vestir e se comportar.

O rapaz estranhava os presentes que ganhava da moça. Não combinava com ele. Mas Zé Luís gostava tanto da Fifa que não se importou em ceder e mudar um pouco o estilo de ser e de viver.

Zé Luís passou a beber vinho e a ouvir jazz. Começou a usar camisa polo da Lacoste, com a blusa de frio enrolada no pescoço, relógio combinando com a cor da camisa e sapatênis. Festas e shows somente na área VIP. Passou a pentear o cabelo para trás, com muito gel. Deixou a pelada semanal com os amigos do bairro pra malhar numa academia do shopping. Comprou um Veloster. Assinou a Veja.

Não teve jeito. A Fifa padronizou o Zé Luís.


quarta-feira, 15 de maio de 2013

Levando desaforo pra casa


Desde criança ouço as pessoas falarem que Fulano, Beltrano e Cicrano não levam desaforo pra casa. Que se um dos três ouvir ou vir qualquer coisa que o desagrade ou o faça se sentir ofendido, vai lá e resolve a questão na hora, da forma que for possível. Na minha imensa ingenuidade juvenil, eu achava aquilo bonito. Pra mim, estava tudo certo. Um homem de verdade tinha que defender sua honra e seu nome. E, por mais que ouvisse dos meus pais que aquilo tudo era uma grande besteira, eu cismei que seria como Fulano, Beltrano e Cicrano e que jamais levaria um desaforo pra casa.

Ainda bem que não usei essa máxima por muito tempo na minha vida. Não foi difícil perceber que era mais fácil conversar do que brigar e pedir desculpas do que perder um amigo. É claro que em algumas ocasiões tive vontade de resolver da forma mais violenta, mas nada que uma boa oxigenada no cérebro, depois de ter contado até dez, não tenha consertado.

Sendo assim, Fulano, Beltrano e Cicrano e os desaforos que nunca levavam pra casa se tornaram figuras obsoletas e ridículas para mim. Como tinha ficado mais maduro e racional, achei que para todas as pessoas. Mas foi aí que me enganei completamente.

Está cada vez mais comum ver algum discípulo dos três amigos bater no peito e gritar o bordão:

- Eu não levo desaforo pra casa!

E aí tome briga no trânsito, no campo de futebol, no bar e até mesmo na festa de família. Parece ser questão de honra estar com a razão em uma conversa e se alguém discorda do Fulano é briga certa. Esbarrar no Beltrano numa boate é sinônimo de pancadaria e quebradeira. Uma brincadeira sobre a derrota do time do Cicrano e o tempo fecha. E se algum infeliz entrar na frente do carro de um dos três, numa rua engarrafada, o velho tresoitão vai sair do porta-luvas.

Quanto mais o tempo passa, mais eu vejo gente que se orgulha da fama de valente e brigão, quando deveria ser exatamente o contrário, já na metade da segunda década do século XXI. Homens e mulheres, jovens e velhos, não importa.

Uso uma citação do indiano Mahatma Gandhi para finalizar esta história. “Olho por olho e o mundo acabará cego”. Tomara que não.


P.S. – Beltrano morreu numa briga de bar, após uma discussão boba com um vizinho. Cicrano está preso, depois de ter agredido um idoso na porta de um estádio. E Fulano vive triste e arrependido, sem nenhum amigo ou parente com quem falar. Todos têm medo de Fulano porque ele nunca leva desaforo pra casa.


quinta-feira, 14 de março de 2013

Fábulas Modernas III – O jacaré embaixo da cama


Esta história se passou numa pequena cidade do interior de Minas Gerais, por volta de 1970, e, por mais que pareça uma fábula, aconteceu de verdade. Tonico Aroeira era uma espécie de faz tudo de um pequeno time de futebol da região. Era roupeiro, massagista, faxineiro, cozinheiro e só não entrava em campo pra chutar a bola porque o reumatismo e a espinhela caída não deixavam.

Numa determinada manhã de verão, Tonico saiu correndo da salinha onde ficavam guardados os uniformes do time, antes de um treino, apavorado, dizendo que tinha visto um jacaré. A risada foi geral. Ninguém acreditou no pobre Tonico e todos acharam que ele estava sofrendo os efeitos do forte calor. Foi mandado para o médico do clube, que, também sem acreditar na história do jacaré, deu um calmante para o roupeiro e recomendou descanso e muito líquido.

O negócio é que Tonico via o tal jacaré praticamente todos os dias, com ou sem calor. E a cada grito de pavor era mandado mais uma vez para o médico. A dosagem dos calmantes foi ficando mais forte e, com o passar do tempo, as pessoas desconfiaram da sanidade do pobre homem. Mesmo assim, ele continuava jurando por todos os santos que tinha mesmo um jacaré na rouparia do time, ainda que nenhuma outra pessoa tivesse visto o aterrorizante bicho.

As visitas de Tonico Aroeira ao médico passaram a ser diárias, até que um dia, sem explicações, o roupeiro não foi mais ao consultório. Depois de três semanas, o doutor resolveu procurar o técnico do time para saber notícias de Tonico, e se ele finalmente tinha se curado das alucinações.

- O Tonico, doutor? O senhor se lembra do jacaré que ele tanto falava?

- Claro. Pois eu vim saber se ele já parou com estas histórias.

- Parou, uai. Pois o senhor acredita que tinha mesmo um jacaré na rouparia do clube?

- Não brinca. Mas o que aconteceu?

- O Tonico matou o bicho com uma peixeira. Tirou o couro, fez uma bola e 11 pares de chuteira, a gente tava mesmo precisando. Com a carne, o danado ainda fez um churrasco caprichado. Estava uma delícia!

quinta-feira, 7 de março de 2013

Fábulas Modernas II – O menino que gritava lobo


Beto Marola começou jogando futebol nas praias do sul da Bahia. Filho de pescadores pobres, via no esporte uma chance única de ascensão social. A vida no mar era difícil e o trabalho repleto de concorrentes, já que o cacau nem de longe lembrava os tempos áureos em que as fazendas geravam riquezas e poder, o que fazia com que mais e mais pessoas saíssem do campo e se aventurassem nas embarcações mar adentro, em busca de sustento.

O talento de Beto com a bola nos pés chamou a atenção de clubes profissionais da capital e logo o garoto teve a chance de fazer um teste. Um problema, porém, tinha de ser superado por ele, e não foram poucos os que o aconselharam. Marola tinha o péssimo hábito de simular faltas e sua fama de cai-cai era conhecida de Ilhéus a Alcobaça.

Chegando ao Vitória, tradicional clube de Salvador, Beto Marola foi aprovado nos testes e não demorou a ter sua chance no time principal. A velha mania, entretanto, não o abandonou, e ele, sempre que tinha a oportunidade, simulava faltas e abusava do fingimento. Tanto fez que o técnico do time o chamou para um conversa reservada.

- Garoto, você conhece a história do menino que gritava lobo? Quando a noite caía, ele gritava, dizendo às pessoas de sua aldeia que um lobo estava entre eles. O alvoroço era enorme, até que percebiam que não havia lobo nenhum. Mas ele não se importava e repetia a brincadeira todas as noites. Com o tempo, as pessoas descobriram que era mentira e pararam de procurar o lobo. Até que numa noite escura de inverno, um lobo faminto chegou e viu o menino. Ele gritou, berrou e urrou desesperado. Mas ninguém na aldeia se importou. O lobo então, feroz e faminto, devorou o menino, que pagou por tantas mentiras que tinha contado.

- Boa história, mas o que eu tenho com isso? Aqui na Bahia não tem lobo – respondeu Beto Marola, com um riso de deboche no rosto.

- Sim, não tem lobo. Mas se você continuar fingindo que recebe faltas, quando receber, de verdade, ninguém vai acreditar.

Marola não ligou muito para a história do velho treinador e continuou seu trabalho no time. Como era muito habilidoso e tinha um talento nato para driblar, foi titular durante todo o Campeonato Baiano. A fama de cai-cai, no entanto, nunca o abandonou, e os árbitros já sabiam que Beto era capaz de simular um pênalti, mesmo que tivesse condições de continuar em pé e fazer um gol.

Chegou o dia da grande final do campeonato, e a Fonte Nova estava lotada para o clássico entre Bahia e Vitória. O jogo seguia 0 a 0, resultado que dava o título para o Bahia, quando, aos 45 minutos do segundo tempo, Beto Marola invadiu a área e levou um forte chute do zagueiro no tornozelo. A dor foi tanta que Beto caiu na hora, rolando no gramado, com a mão no local machucado. O árbitro não acreditou em Marola e não marcou pênalti. O jogo acabou 0 a 0 e o Vitória perdeu o título.

A revolta de Beto foi imensa, mas ele não encontrou apoio em nenhum de seus companheiros de time, que também acharam que ele tinha simulado, mesmo vendo o tornozelo inchado do fingidor. O velho treinador olhou para Marola com reprovação e nem a fanática torcida do Vitória xingou o juiz.

Decepcionado, Beto Marola abandonou o futebol e virou pescador em Ilhéus. Nunca mais foi visto. Dizem alguns que ele morreu comido por um tubarão, após vários alarmes falsos pelo rádio do barco. O dia em que ninguém foi a seu socorro, o tubarão apareceu e jantou o mentiroso.