quinta-feira, 14 de março de 2013

Fábulas Modernas III – O jacaré embaixo da cama


Esta história se passou numa pequena cidade do interior de Minas Gerais, por volta de 1970, e, por mais que pareça uma fábula, aconteceu de verdade. Tonico Aroeira era uma espécie de faz tudo de um pequeno time de futebol da região. Era roupeiro, massagista, faxineiro, cozinheiro e só não entrava em campo pra chutar a bola porque o reumatismo e a espinhela caída não deixavam.

Numa determinada manhã de verão, Tonico saiu correndo da salinha onde ficavam guardados os uniformes do time, antes de um treino, apavorado, dizendo que tinha visto um jacaré. A risada foi geral. Ninguém acreditou no pobre Tonico e todos acharam que ele estava sofrendo os efeitos do forte calor. Foi mandado para o médico do clube, que, também sem acreditar na história do jacaré, deu um calmante para o roupeiro e recomendou descanso e muito líquido.

O negócio é que Tonico via o tal jacaré praticamente todos os dias, com ou sem calor. E a cada grito de pavor era mandado mais uma vez para o médico. A dosagem dos calmantes foi ficando mais forte e, com o passar do tempo, as pessoas desconfiaram da sanidade do pobre homem. Mesmo assim, ele continuava jurando por todos os santos que tinha mesmo um jacaré na rouparia do time, ainda que nenhuma outra pessoa tivesse visto o aterrorizante bicho.

As visitas de Tonico Aroeira ao médico passaram a ser diárias, até que um dia, sem explicações, o roupeiro não foi mais ao consultório. Depois de três semanas, o doutor resolveu procurar o técnico do time para saber notícias de Tonico, e se ele finalmente tinha se curado das alucinações.

- O Tonico, doutor? O senhor se lembra do jacaré que ele tanto falava?

- Claro. Pois eu vim saber se ele já parou com estas histórias.

- Parou, uai. Pois o senhor acredita que tinha mesmo um jacaré na rouparia do clube?

- Não brinca. Mas o que aconteceu?

- O Tonico matou o bicho com uma peixeira. Tirou o couro, fez uma bola e 11 pares de chuteira, a gente tava mesmo precisando. Com a carne, o danado ainda fez um churrasco caprichado. Estava uma delícia!

quinta-feira, 7 de março de 2013

Fábulas Modernas II – O menino que gritava lobo


Beto Marola começou jogando futebol nas praias do sul da Bahia. Filho de pescadores pobres, via no esporte uma chance única de ascensão social. A vida no mar era difícil e o trabalho repleto de concorrentes, já que o cacau nem de longe lembrava os tempos áureos em que as fazendas geravam riquezas e poder, o que fazia com que mais e mais pessoas saíssem do campo e se aventurassem nas embarcações mar adentro, em busca de sustento.

O talento de Beto com a bola nos pés chamou a atenção de clubes profissionais da capital e logo o garoto teve a chance de fazer um teste. Um problema, porém, tinha de ser superado por ele, e não foram poucos os que o aconselharam. Marola tinha o péssimo hábito de simular faltas e sua fama de cai-cai era conhecida de Ilhéus a Alcobaça.

Chegando ao Vitória, tradicional clube de Salvador, Beto Marola foi aprovado nos testes e não demorou a ter sua chance no time principal. A velha mania, entretanto, não o abandonou, e ele, sempre que tinha a oportunidade, simulava faltas e abusava do fingimento. Tanto fez que o técnico do time o chamou para um conversa reservada.

- Garoto, você conhece a história do menino que gritava lobo? Quando a noite caía, ele gritava, dizendo às pessoas de sua aldeia que um lobo estava entre eles. O alvoroço era enorme, até que percebiam que não havia lobo nenhum. Mas ele não se importava e repetia a brincadeira todas as noites. Com o tempo, as pessoas descobriram que era mentira e pararam de procurar o lobo. Até que numa noite escura de inverno, um lobo faminto chegou e viu o menino. Ele gritou, berrou e urrou desesperado. Mas ninguém na aldeia se importou. O lobo então, feroz e faminto, devorou o menino, que pagou por tantas mentiras que tinha contado.

- Boa história, mas o que eu tenho com isso? Aqui na Bahia não tem lobo – respondeu Beto Marola, com um riso de deboche no rosto.

- Sim, não tem lobo. Mas se você continuar fingindo que recebe faltas, quando receber, de verdade, ninguém vai acreditar.

Marola não ligou muito para a história do velho treinador e continuou seu trabalho no time. Como era muito habilidoso e tinha um talento nato para driblar, foi titular durante todo o Campeonato Baiano. A fama de cai-cai, no entanto, nunca o abandonou, e os árbitros já sabiam que Beto era capaz de simular um pênalti, mesmo que tivesse condições de continuar em pé e fazer um gol.

Chegou o dia da grande final do campeonato, e a Fonte Nova estava lotada para o clássico entre Bahia e Vitória. O jogo seguia 0 a 0, resultado que dava o título para o Bahia, quando, aos 45 minutos do segundo tempo, Beto Marola invadiu a área e levou um forte chute do zagueiro no tornozelo. A dor foi tanta que Beto caiu na hora, rolando no gramado, com a mão no local machucado. O árbitro não acreditou em Marola e não marcou pênalti. O jogo acabou 0 a 0 e o Vitória perdeu o título.

A revolta de Beto foi imensa, mas ele não encontrou apoio em nenhum de seus companheiros de time, que também acharam que ele tinha simulado, mesmo vendo o tornozelo inchado do fingidor. O velho treinador olhou para Marola com reprovação e nem a fanática torcida do Vitória xingou o juiz.

Decepcionado, Beto Marola abandonou o futebol e virou pescador em Ilhéus. Nunca mais foi visto. Dizem alguns que ele morreu comido por um tubarão, após vários alarmes falsos pelo rádio do barco. O dia em que ninguém foi a seu socorro, o tubarão apareceu e jantou o mentiroso.

segunda-feira, 4 de março de 2013

Fábulas Modernas I – A cigarra e a formiga


Pedro e Paulo eram gêmeos idênticos que tinham o sonho univitelino de ser uma grande estrela do futebol mundial. Talento para isto os dois tinham de sobra e já demonstravam desde os primeiros chutes em bolas de pano, ainda crianças, dentro de casa. O olho clínico do pai não se enganou e, com os meninos ainda na pré-escola, já falava para os quatro cantos que tinha em casa dois futuros craques.

O tempo foi, aos poucos, fazendo com que o que parecia devaneio de pai coruja se tornasse realidade e, antes dos 14 anos completos, Pedro e Paulo já eram atração em qualquer campinho da cidade onde iam jogar.

Mesmo sendo iguais fisicamente, os dois garotos tinham muitas diferenças. Pedro era o esforçado da dupla e Paulo fazia o tipo bonachão. Enquanto Pedro fazia questão de caprichar nos deveres escolares e nas tarefas caseiras, Paulo não hesitava em colar do irmão e enrolar nas obrigações assumidas com a mãe, sabendo que mais cedo ou mais tarde, tudo se resolveria, de alguma forma.

Dentro de campo, com a bola nos pés, porém, os dois eram novamente gêmeos. Craques de igual intensidade, ainda que com estilos opostos. Pedro era o atacante lutador, daquela espécie que não conhece bola perdida e não descansa até finalizar a jogada à sua maneira, enquanto Paulo era o oportunista, que sabia se posicionar na área como ninguém, esperando a hora certa de dar o bote e decidir a jogada. Sem muito esforço, é claro.

E eis que chegou o dia em que a grande chance do sonho de se tornar uma estrela do futebol mundial se tornar realidade surgiu para os dois garotos. Em três semanas, dirigentes do Milan viriam ao bairro acompanhar o jogo de fim de ano entre os times locais. Os italianos levariam o melhor jogador para treinar nas categorias de base do time italiano, com contrato assinado e salário de gente grande.

A ansiedade tomou conta dos gêmeos e o assunto na vizinhança não podia ser outro. Estava claro, desde o começo, ainda que mais de 50 jogadores estivessem inscritos para o jogo, que a vaga no Milan era de um dos dois irmãos.

A maneira de passar as três semanas, entretanto, foi muito diferente para Pedro e Paulo. Enquanto o primeiro treinou como louco, com uma carga diária de exercícios pouco comum para um adolescente, o segundo descansou, fez trancinhas africanas no cabelo e ensaiou incontáveis danças e coreografias para comemorar os possíveis gols que faria.

O esperado dia chegou. Os italianos apareceram no horário marcado, com câmeras de vídeo e blocos de anotações. O campo estava lotado, com todo o bairro querendo ver o embate que levaria um garoto da redondeza para o futebol europeu. Pedro e Paulo fizeram o melhor que puderam, cada um ao seu estilo, mas nada foi suficiente para que o jogo saísse do 0 a 0 e fosse para a disputa de pênaltis.

O time dos irmãos ganhou a decisão, com ambos acertando os pênaltis que cobraram. Pedro deu socos no peito e no ar, após o gol, enquanto Paulo deu duas piruetas, quatro requebradas e fez uma dancinha esquisita de uma banda de um ritmo novo vindo do Piauí.

Em princípio, os dirigentes do Milan ficaram em dúvida sobre o irmão que levariam para a Itália, já que ambos haviam tido atuações bem parecidas na partida. Mas o imbróglio não durou muito. O semblante descontraído de Paulo, com o riso fácil, as danças e o penteado exótico, revelavam o perfil de um cara decidido, que sabe o que quer da vida. Enquanto o jeito tenso e o rosto fechado de Pedro eram típicos de um sujeito que tem que lutar contra seus próprios temores e fantasmas antes de enfrentar o mundo.

A formiga Pedro deu um abraço forte na cigarra Paulo e a parabenizou pela conquista. Ainda meio aéreo, com os dedos entre as tranças africanas com as quais não tinha se acostumado, Paulo respondeu:

- Ah, Pedrão, vai no meu lugar, cara, por favor. Quero mexer com isso não.