sábado, 19 de janeiro de 2013

Garrincha


Garrincha foi um personagem fundamental no meu imaginário infantil. Eu não sabia nada sobre a vida, tampouco sobre futebol, assuntos que não domino até hoje, é verdade, mas, desde aquele tempo, eu tinha certeza que Mané era um cara diferente. Não porque eu fosse uma criança especial, com poderes telepáticos ou inteligência acima da média, mas sim porque Manuel Francisco dos Santos era o único assunto que meu pai e meu avô materno debatiam sem discussões nem problemas, já que eram torcedores de times rivais. Então, era natural que Mané Garrincha se tornasse uma figura tão fantástica, doce e simpática na cabeça de um garoto que era fanático por futebol antes mesmo de conseguir falar mamãe e papai dentro do berço.

Deve ser por isto que me lembro de cada detalhe do dia em que Mané morreu. Era janeiro e eu passava as férias no interior de Minas. A tristeza sincera das pessoas e o choro por alguém que não conheciam pessoalmente habitam minha memória até hoje. Minha família também ficou triste, é claro. Meu avô e meu pai principalmente. Ficamos todos paralisados à frente da TV, sob o calor saariano do norte de Minas, devorando tudo que a tela em preto e branco mostrava. Em 1983, a vida não era como hoje, com 300 canais em alta definição e um milhão e meio de sites na Internet à disposição, mas, para uma criança de seis anos, a imagem do corpo morto de um ídolo, enrolado em uns trapos, valia como a programação de 48 horas.

O tempo foi passando, e a curiosidade e o apetite sobre a vida de Garrincha foram sendo alimentados com filmes, imagens velhas de jogos, revistas e jornais antigos, e, principalmente, com inúmeras histórias contadas por meu velho avô, num tempo em que ele se tornava tão menino quanto eu, ao recordar passagens de sua juventude.

O fascínio e a admiração pelos dribles, gols e jogadas de Mané nunca me abandonaram, mas ficaram em segundo plano, quando eu, já adolescente, tive noção da tragédia que havia sido sua vida. Toda a cachaça, todas as mulheres e toda a dor que Garrincha sentiu e causou tinham em mim o poder de serem muito mais incríveis do que sua trajetória dentro de campo.

Meu avô, talvez por perceber o interesse que eu tinha por um aspecto diferente da vida de Mané, me contava todo o tipo de história que se recordava. Lendas e fatos sobre Elza Soares, amantes suecas, litros de cachaça consumidos e a solidão de Garrincha do fim da vida. Não duvido nada que ele tenha inventado algumas coisas. Ou, pelo menos, exagerado em alguns detalhes. Nunca parei pra pensar nisso antes de escrever este texto, mas esta foi a época em que meu avô e eu estivemos mais próximos.

A vida tomou seu rumo, e meu avô e eu fomos nos afastando pouco a pouco, sem perceber que os 300 quilômetros de distância entre a velha cidadezinha do interior e a capital são tão terríveis quanto parecem ser. Adulto, com responsabilidades e contas pra pagar, me achando cada vez mais importante, deixei de lado a vida do velho ídolo Garrincha e o convívio e as histórias do querido avô. Sem imaginar a falta que elas me fariam e sem saber que era isto o que realmente importava...

Garrincha morreu no dia 20 de janeiro de 1983. Eu tinha seis anos de idade. Mesmo sem ter muita noção do que era a morte naquele tempo, eu percebi que não era uma coisa legal, ao sentir de perto a tristeza do meu velho avô. Naquele dia, uma parte muito boa de sua vida morreu também. Em dezembro de 1997, ele também se foi. Eu me lembro bem de tudo o que senti. Uma parte muito boa da minha vida morreu também.

Neste domingo, o mundo vai se lembrar dos 30 anos da morte de Manuel Francisco dos Santos, o Garrincha, meu ídolo de infância e de toda a vida. Eu também vou me emocionar, rir das histórias que conheço desde quando me entendo por gente, e rezar por ele. Mas é impossível não sentir uma saudade louca do meu velho avô, o primeiro amigo a me falar dos dribles, das noites e das tristezas do Mané. E que deixou um vazio maior ainda quando se foi.


* Para o bom e velho Venutinho, meu amigo e meu avô.

3 comentários:

  1. Lembrei de um monte de passagens em família tb mimimimi...Lindo texto.

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  2. Muito legal, Marcão... Abraço fraterno do amigo que também aprecia Garrincha mas principalmente, os vovôs. Taitson

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  3. Texto lindo!! parabéns!! deu saudade de muita coisa.... de bom futebol e de convívio com meu avô, que se foi tão cedo...

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