quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Orêia


I

Orêia sempre foi o melhor jogador da cidade. Sabia driblar, chutar, cabecear e lançar. Era veloz, inteligente, hábil e forte. Aguentava pancadas dos zagueirões como poucos, mesmo com o corpo magro e esguio. E tinha o raciocínio rápido como a luz, a ponto de imaginar o final de uma jogada antes mesmo da bola chegar aos seus pés. Enfim, Orêia nasceu para ser jogador.

Com tanto talento, Orêia logo se destacou nos times da cidade, onde ganhou e foi artilheiro e melhor jogador de todos os campeonatos que disputou, mesmo muito mais jovem do que os adversários e companheiros. Não demorou para que fosse convidado a fazer um teste em um grande time da capital do estado, com apenas 15 anos de idade.

Passar na peneira e ficar no clube foi moleza para o garoto. Difícil foi evitar as gozações com a orelha grande, motivo do apelido e de tantas piadas ouvidas durante toda a vida. O tema foi tão recorrente que, ao longo dos anos, deixou de incomodar Carlos Augusto, que aceitou a alcunha como identidade natural e virou Orêia até para os familiares.

Com o passar do tempo, Orêia foi fazendo o que todos esperavam dele nas categorias de base do clube da capital. Foi campeão, artilheiro e o grande craque do time. Até que chegou a hora de ir para o profissional. Mas eis que o treinador, um desses moderninhos de terno, gravata e gel no cabelo, implicou com o apelido do rapaz. Afinal de contas, no mundo globalizado não há espaço para um Orêia brilhar. Ainda mais com um nome bonito desses. Carlos Augusto.

- Orêia é pra roça, pra cidade onde você nasceu. Aqui não. Aqui é Carlos Augusto. Assim você vai longe! Vai chegar à Seleção e ao Real Madrid!

Sem se importar com detalhes fúteis como este, Orêia não ligou para a mudança no nome e, já no primeiro jogo como profissional, assinou a súmula como Carlos Augusto, com a pompa de estrear com a camisa 10 e o estádio lotado.

Orêia, aliás, Carlos Augusto, até que não foi mal na partida. Correu e se esforçou muito, mas parece que alguma coisa estava faltando. O brilho que o menino sempre teve não apareceu no adulto, que foi apenas mais um em campo. Torcida, imprensa e os dirigentes do clube acharam normal, porque era apenas a primeira partida e Carlos Augusto só tinha 18 anos. Tamanha responsabilidade assustava mesmo.

A temporada seguiu, o campeonato acabou, veio o ano seguinte, mais um, e nada do Carlos Augusto deslanchar. O futebol espetacular e vistoso deu lugar a um jeito de jogar burocrático e enfadonho, até que a paciência do clube acabou e a jovem promessa foi vendida para um time de outro estado, da segunda divisão. No dia em que foi embora, o treinador engravatado sequer apareceu para se despedir.


II


Sem o moral e a festa dos tempos de glória, Carlos Augusto chegou ao novo clube. Não foi o primeiro e nem seria o último a fracassar numa grande equipe da capital, era a opinião de todos. No dia do primeiro jogo, o novo treinador chegou perto de Carlos Augusto e murmurou ao pé de seu ouvido:

- Você sempre jogou bola como Orêia. Nem sua mãe se lembrava que seu nome é Carlos Augusto. Deixa disso. Aqui você vai voltar a ser o Orêia.

Ainda que continuasse não ligando pra essas coisas, o ex-atual-Orêia arrebentou com o jogo. Fez três gols e deu os passes para os outros dois. E assim foi durante todo o ano. O time foi campeão, voltou para a primeira divisão e Orêia foi o melhor jogador e artilheiro do campeonato. Mas nada disso bastou para convencer os críticos que Orêia tinha potencial para jogar num grande clube.


III


Quis o destino que a estreia do time de Orêia na elite fosse justamente contra o técnico almofadinha. O treinador, que havia feito Orêia mudar de nome, teve que ver, perplexo, o antigo Carlos Augusto fazer os quatro gols de um humilhante 4 a 0, com direito a olé e tudo mais.

O resto da história todos nós conhecemos. Orêia foi campeão do mundo pela Seleção e se tornou ídolo do Real Madrid, exatamente como o treinador moderno, alguns anos antes, havia previsto o destino de Carlos Augusto.

Ainda bem que ainda existem vários Orêias por aí. Assim como existiram Beto Fuscão, Valdemar Carabina, Dadinho, Fio Maravilha, Dedé de Dora e Pirulito. E existiram Pelé, Tostão, Garrincha, Zico e Canhoteiro.

Que o futebol e a vida estão se tornando cada vez mais chatos não há como negar. Mas é bom saber que para cada Diego Magalhães que surgir vai sempre haver um Flávio Caça Rato.


* Para os amigos Dany Starling, Héverton Guimarães, Guilherme Amaral e Emerson Rodrigues

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