quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

João e Tobias


I

João e Tobias eram dois jornalistas esportivos de Belo Horizonte. Trabalhavam em jornais diferentes, mas o dia-a-dia de pautas comuns fez com que se aproximassem e se tornassem amigos. No começo, uma amizade casual, que, aos poucos se tornou sólida e sincera. Tanto que, com o tempo, se tonaram companheiros inseparáveis, parceiros para todos os programas e ocasiões.

Em julho de 1976, os dois foram para a Argentina, como enviados especiais dos jornais, para cobrir o segundo jogo da final da Taça Libertadores, entre Cruzeiro e River Plate. Se o time mineiro conseguisse pelo menos um empate, repetiria o feito que apenas o Santos de Pelé tinha obtido até então e seria campeão da América.

Empolgados com a viagem, os dois prepararam as malas, os passaportes e embarcaram para a primeira experiência internacional de ambos. O cruzeirense João levava na mala também a expectativa de ver seu time campeão, enquanto Tobias, atleticano, não negava que iria torcer fervorosamente para o River.

A cobertura em Buenos Aires correu de forma tranquila e normal. O time argentino venceu a partida, o que obrigou a realização de um jogo-desempate, dali a dois dias, em Santiago, no Chile. Apressados para voltar ao hotel, arrumar a bagagem e partir para o aeroporto, João e Tobias sequer imaginavam que, em poucos instantes, suas vidas iriam mudar para sempre, ao entrar num táxi na porta do Estádio Monumental de Nuñez.


II


João e Tobias, dentro do táxi, nem viram o estranho caminho tomado pelo motorista, de tão envolvidos que estavam na conversa sobre o jogo e os planos de seguir para o Chile. Do estádio do River, no bairro de Nuñez, até o hotel onde estavam hospedados, no centro da cidade, o tempo de deslocamento não poderia passar de 25 minutos. Foi João quem primeiro notou pela janela a rodovia escura, que, definitivamente, não estava no trajeto de volta para o hotel.

Só então os dois perceberam a gravidade da situação. Numa Argentina politicamente instável, governada por militares e tomada pela insegurança, sequestros eram crimes tão comuns quanto o desaparecimento de jovens, e, ainda que não tivessem nada a ver com aquilo tudo, João e Tobias começaram a temer pelo que lhes poderia acontecer. Ainda mais quando o táxi rapidamente entrou por uma estrada de terra e parou no que parecia ser uma fazenda abandonada.


III


João e Tobias foram arrancados do carro por dois homens de verde-oliva na roupa e vermelho-sangue nos olhos, e jogados no chão, antes que pudessem falar qualquer coisa com o taxista. Tentaram explicar que eram brasileiros e que estavam no país apenas por causa do jogo do River Plate. Os soldados riram alto, dizendo que ali só tinha torcedores do Boca.

Entre chutes, socos e humilhantes tapas na face, os dois foram carregados para dentro do velho prédio. Nunca mais se viram. João foi levado para o segundo andar, um amplo salão escuro e sem ventilação, enquanto Tobias foi jogado numa espécie de porão, úmido, gelado, e com cheiro de morte, no subsolo.


IV


João passou horas encolhido num canto, sem enxergar quase nada, ouvindo gritos de horror que vinham dos andares de baixo. Com as mãos e os pés amarrados atrás do corpo, percebeu que era melhor não tentar se mover, porque ficando parado ele conseguia aliviar a dor. Depois de duas intermináveis sessões de interrogatório com os militares, onde mal conseguia falar, não tinha noção de quantas feridas e hematomas trazia no corpo.

A sensação de João era a mais terrível possível. Porque tinha entendido na conversa dos presos argentinos que o andar de cima era brincadeira de criança perto do que acontecia no subsolo, que chamavam de calabouço. Se ele mal conseguia abrir os olhos e respirar, depois de tanta pancada, o que seria de Tobias, mais fraco e frágil fisicamente, que caía de cama com um simples resfriado, no meio de alguns dos psicopatas mais cruéis e violentos da América Latina?

O cansaço fez João desfalecer, já que dormir era impossível, com tantas dores, frio e o que era pior, a agonia de não ter notícias de Tobias, que estava sofrendo ainda mais que ele. Um balde de água gelada o despertou. João foi levantado por dois soldados magros, que fumavam e davam risadas, como se estivessem num parque numa manhã de domingo. Foi jogado num banheiro onde tomou o pior e mais doloroso banho de sua vida. Recebeu roupas limpas e foi colocado num furgão, junto com outros sete companheiros de segundo andar, todos argentinos.


V



João tentou saber de Tobias, enquanto deixava o prédio, mas foi ignorado.


VI


O caso dos dois jornalistas brasileiros presos na Argentina ganhou repercussão mundial em 1976. No ano seguinte, o governo do país vizinho reconheceu o erro cometido, pediu desculpas formais e com a cumplicidade e a boa vontade dos militares brasileiros, o sofrimento de João e Tobias caiu no esquecimento.

Menos para João, é claro, que nunca se esqueceu de um segundo do que viveu, até porque o olho direito cego não permitia tal omissão. Tobias não foi mais visto, e como seu corpo nunca foi achado, foi dado como desaparecido. João fez tudo o que pôde, mas, sem contar com o apoio das autoridades brasileiras, sua missão foi se tornando cada vez mais difícil, ainda que nunca tenha desistido de encontrar o velho amigo Tobias.


VII


João nunca mais voltou à Argentina, até que em fevereiro de 2013, o Atlético foi ao país disputar um jogo pela Taça Libertadores. Já aposentado, mas ainda em atividade no mesmo jornal onde começara a carreira profissional quase 40 anos atrás, João embarcou para Buenos Aires, para cobrir o jogo e prestar a última homenagem a Tobias.

Só então ele se lembrou que nunca havia comemorado o título do Cruzeiro em 1976 e do quanto falaria no ouvido do amigo, torcedor do time rival, se tivesse tido a oportunidade.

João acompanhou o jogo do Atlético, em Avellaneda, cidade da grande Buenos Aires, e mesmo cruzeirense, ficou feliz com uma vitória do Galo, imaginando a alegria que Tobias sentiria se ali estivesse.

Antes de voltar pra casa, foi ao estádio do River Plate, o mesmo onde trabalharam no jogo de 1976. Colocou flores atrás de um dos gols, rezou para Tobias e, pela primeira vez na vida, teve plena certeza de que nunca mais veria o amigo.

Um comentário:

  1. Enquanto um monte de babaca mata um ao outro por causa de "rivalidade" esse texto é grandioso e mostra o que deveria significar a paixão de um time e o respeito cavalheiresco por quem veste a camisa do adversário. Uma pena que a realidade vivida pela maioria seja totalmente distorcida.

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