I
João e Tobias eram dois jornalistas esportivos de Belo
Horizonte. Trabalhavam em jornais diferentes, mas o dia-a-dia de pautas comuns
fez com que se aproximassem e se tornassem amigos. No começo, uma amizade
casual, que, aos poucos se tornou sólida e sincera. Tanto que, com o tempo, se
tonaram companheiros inseparáveis, parceiros para todos os programas e
ocasiões.
Em julho de 1976, os dois foram para a Argentina, como
enviados especiais dos jornais, para cobrir o segundo jogo da final da Taça
Libertadores, entre Cruzeiro e River Plate. Se o time mineiro conseguisse pelo
menos um empate, repetiria o feito que apenas o Santos de Pelé tinha obtido até
então e seria campeão da América.
Empolgados com a viagem, os dois prepararam as malas, os
passaportes e embarcaram para a primeira experiência internacional de ambos. O
cruzeirense João levava na mala também a expectativa de ver seu time campeão,
enquanto Tobias, atleticano, não negava que iria torcer fervorosamente para o
River.
A cobertura em Buenos Aires correu de forma tranquila e
normal. O time argentino venceu a partida, o que obrigou a realização de um jogo-desempate,
dali a dois dias, em Santiago, no Chile. Apressados para voltar ao hotel,
arrumar a bagagem e partir para o aeroporto, João e Tobias sequer imaginavam
que, em poucos instantes, suas vidas iriam mudar para sempre, ao entrar num
táxi na porta do Estádio Monumental de Nuñez.
II
João e Tobias, dentro do táxi, nem viram o estranho
caminho tomado pelo motorista, de tão envolvidos que estavam na conversa sobre
o jogo e os planos de seguir para o Chile. Do estádio do River, no bairro de
Nuñez, até o hotel onde estavam hospedados, no centro da cidade, o tempo de
deslocamento não poderia passar de 25 minutos. Foi João quem primeiro notou
pela janela a rodovia escura, que, definitivamente, não estava no trajeto de
volta para o hotel.
Só então os dois perceberam a gravidade da situação. Numa
Argentina politicamente instável, governada por militares e tomada pela
insegurança, sequestros eram crimes tão comuns quanto o desaparecimento de
jovens, e, ainda que não tivessem nada a ver com aquilo tudo, João e Tobias começaram
a temer pelo que lhes poderia acontecer. Ainda mais quando o táxi rapidamente
entrou por uma estrada de terra e parou no que parecia ser uma fazenda
abandonada.
III
João e Tobias foram arrancados do carro por dois homens de
verde-oliva na roupa e vermelho-sangue nos olhos, e jogados no chão, antes que
pudessem falar qualquer coisa com o taxista. Tentaram explicar que eram
brasileiros e que estavam no país apenas por causa do jogo do River Plate. Os
soldados riram alto, dizendo que ali só tinha torcedores do Boca.
Entre chutes, socos e humilhantes tapas na face, os dois
foram carregados para dentro do velho prédio. Nunca mais se viram. João foi levado
para o segundo andar, um amplo salão escuro e sem ventilação, enquanto Tobias foi
jogado numa espécie de porão, úmido, gelado, e com cheiro de morte, no subsolo.
IV
João passou horas encolhido num canto, sem enxergar quase
nada, ouvindo gritos de horror que vinham dos andares de baixo. Com as mãos e
os pés amarrados atrás do corpo, percebeu que era melhor não tentar se mover, porque
ficando parado ele conseguia aliviar a dor. Depois de duas intermináveis sessões
de interrogatório com os militares, onde mal conseguia falar, não tinha noção
de quantas feridas e hematomas trazia no corpo.
A sensação de João era a mais terrível possível. Porque tinha
entendido na conversa dos presos argentinos que o andar de cima era brincadeira
de criança perto do que acontecia no subsolo, que chamavam de calabouço. Se ele
mal conseguia abrir os olhos e respirar, depois de tanta pancada, o que seria
de Tobias, mais fraco e frágil fisicamente, que caía de cama com um simples
resfriado, no meio de alguns dos psicopatas mais cruéis e violentos da América
Latina?
O cansaço fez João desfalecer, já que dormir era impossível,
com tantas dores, frio e o que era pior, a agonia de não ter notícias de
Tobias, que estava sofrendo ainda mais que ele. Um balde de água gelada o
despertou. João foi levantado por dois soldados magros, que fumavam e davam risadas,
como se estivessem num parque numa manhã de domingo. Foi jogado num banheiro
onde tomou o pior e mais doloroso banho de sua vida. Recebeu roupas limpas e
foi colocado num furgão, junto com outros sete companheiros de segundo andar,
todos argentinos.
V
João tentou saber de Tobias, enquanto deixava o prédio, mas
foi ignorado.
VI
O caso dos dois jornalistas brasileiros presos na Argentina
ganhou repercussão mundial em 1976. No ano seguinte, o governo do país vizinho
reconheceu o erro cometido, pediu desculpas formais e com a cumplicidade e a
boa vontade dos militares brasileiros, o sofrimento de João e Tobias caiu no
esquecimento.
Menos para João, é claro, que nunca se esqueceu de um
segundo do que viveu, até porque o olho direito cego não permitia tal omissão.
Tobias não foi mais visto, e como seu corpo nunca foi achado, foi dado como
desaparecido. João fez tudo o que pôde, mas, sem contar com o apoio das
autoridades brasileiras, sua missão foi se tornando cada vez mais difícil, ainda
que nunca tenha desistido de encontrar o velho amigo Tobias.
VII
João nunca mais voltou à Argentina, até que em fevereiro de
2013, o Atlético foi ao país disputar um jogo pela Taça Libertadores. Já
aposentado, mas ainda em atividade no mesmo jornal onde começara a carreira
profissional quase 40 anos atrás, João embarcou para Buenos Aires, para cobrir
o jogo e prestar a última homenagem a Tobias.
Só então ele se lembrou que nunca havia comemorado o título
do Cruzeiro em 1976 e do quanto falaria no ouvido do amigo, torcedor do time
rival, se tivesse tido a oportunidade.
João acompanhou o jogo do Atlético, em Avellaneda, cidade da
grande Buenos Aires, e mesmo cruzeirense, ficou feliz com uma vitória
do Galo, imaginando a alegria que Tobias sentiria se ali estivesse.
Antes de voltar pra casa, foi ao estádio do River Plate, o
mesmo onde trabalharam no jogo de 1976. Colocou flores atrás de um dos gols, rezou
para Tobias e, pela primeira vez na vida, teve plena certeza de que nunca mais veria
o amigo.
Enquanto um monte de babaca mata um ao outro por causa de "rivalidade" esse texto é grandioso e mostra o que deveria significar a paixão de um time e o respeito cavalheiresco por quem veste a camisa do adversário. Uma pena que a realidade vivida pela maioria seja totalmente distorcida.
ResponderExcluir