Garrincha foi um personagem fundamental no meu imaginário
infantil. Eu não sabia nada sobre a vida, tampouco sobre futebol, assuntos que
não domino até hoje, é verdade, mas, desde aquele tempo, eu tinha certeza que
Mané era um cara diferente. Não porque eu fosse uma criança especial, com
poderes telepáticos ou inteligência acima da média, mas sim porque Manuel
Francisco dos Santos era o único assunto que meu pai e meu avô materno debatiam
sem discussões nem problemas, já que eram torcedores de times rivais. Então, era
natural que Mané Garrincha se tornasse uma figura tão fantástica, doce e
simpática na cabeça de um garoto que era fanático por futebol antes mesmo de
conseguir falar mamãe e papai dentro do berço.
Deve ser por isto que me lembro de cada detalhe do dia em
que Mané morreu. Era janeiro e eu passava as férias no interior de Minas. A
tristeza sincera das pessoas e o choro por alguém que não conheciam
pessoalmente habitam minha memória até hoje. Minha família também ficou triste,
é claro. Meu avô e meu pai principalmente. Ficamos todos paralisados à frente
da TV, sob o calor saariano do norte de Minas, devorando tudo que a tela em preto
e branco mostrava. Em 1983, a vida não era como hoje, com 300 canais em alta
definição e um milhão e meio de sites na Internet à disposição, mas, para uma
criança de seis anos, a imagem do corpo morto de um ídolo, enrolado em uns
trapos, valia como a programação de 48 horas.
O tempo foi passando, e a curiosidade e o apetite sobre a
vida de Garrincha foram sendo alimentados com filmes, imagens velhas de jogos,
revistas e jornais antigos, e, principalmente, com inúmeras histórias contadas
por meu velho avô, num tempo em que ele se tornava tão menino quanto eu, ao
recordar passagens de sua juventude.
O fascínio e a admiração pelos dribles, gols e jogadas de
Mané nunca me abandonaram, mas ficaram em segundo plano, quando eu, já adolescente,
tive noção da tragédia que havia sido sua vida. Toda a cachaça, todas as
mulheres e toda a dor que Garrincha sentiu e causou tinham em mim o poder de
serem muito mais incríveis do que sua trajetória dentro de campo.
Meu avô, talvez por perceber o interesse que eu tinha por um
aspecto diferente da vida de Mané, me contava todo o tipo de história que se
recordava. Lendas e fatos sobre Elza Soares, amantes suecas, litros de cachaça
consumidos e a solidão de Garrincha do fim da vida. Não duvido nada que ele
tenha inventado algumas coisas. Ou, pelo menos, exagerado em alguns detalhes.
Nunca parei pra pensar nisso antes de escrever este texto, mas esta foi a época
em que meu avô e eu estivemos mais próximos.
A vida tomou seu rumo, e meu avô e eu fomos nos afastando
pouco a pouco, sem perceber que os 300 quilômetros de distância entre a velha
cidadezinha do interior e a capital são tão terríveis quanto parecem ser. Adulto,
com responsabilidades e contas pra pagar, me achando cada vez mais importante, deixei
de lado a vida do velho ídolo Garrincha e o convívio e as histórias do querido
avô. Sem imaginar a falta que elas me fariam e sem saber que era isto o que
realmente importava...
Garrincha morreu no dia 20 de janeiro de 1983. Eu tinha seis
anos de idade. Mesmo sem ter muita noção do que era a morte naquele tempo, eu percebi
que não era uma coisa legal, ao sentir de perto a tristeza do meu velho avô. Naquele
dia, uma parte muito boa de sua vida morreu também. Em dezembro de 1997, ele
também se foi. Eu me lembro bem de tudo o que senti. Uma parte muito boa da
minha vida morreu também.
Neste domingo, o mundo vai se lembrar dos 30 anos da morte
de Manuel Francisco dos Santos, o Garrincha, meu ídolo de infância e de toda a vida.
Eu também vou me emocionar, rir das histórias que conheço desde quando me
entendo por gente, e rezar por ele. Mas é impossível não sentir uma saudade louca
do meu velho avô, o primeiro amigo a me falar dos dribles, das noites e das
tristezas do Mané. E que deixou um vazio maior ainda quando se foi.
* Para o bom e velho
Venutinho, meu amigo e meu avô.
Lembrei de um monte de passagens em família tb mimimimi...Lindo texto.
ResponderExcluirMuito legal, Marcão... Abraço fraterno do amigo que também aprecia Garrincha mas principalmente, os vovôs. Taitson
ResponderExcluirTexto lindo!! parabéns!! deu saudade de muita coisa.... de bom futebol e de convívio com meu avô, que se foi tão cedo...
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